ANEXO 2 – Algumas experiências de Educação Criativa e Libertadora inspiradas no Educandário Santo Antonio de Bebedouro (ESAB)

ANEXO 2 – Algumas experiências de Educação Criativa e Libertadora inspiradas no Educandário Santo Antonio de Bebedouro (ESAB)


1. – Breves  relatos de algumas experiências pedagógicas por mim vividas e que foram compartilhadas e experienciadas com Frei Eduardo.
Vera Lucia Bernardo[1]


“Intacta memória, se eu chamasse uma por uma as coisas que
adorei,
    talvez a minha a vida regressasse vencida pelo amor que a
sonhei.
Sofia de Mello Breyme


Se há alguma verdade absoluta no mundo é essa que diz que nem tudo é o que parece.
Eram os idos finais dos anos de 1970, vivíamos numa sociedade, pautada por levarmos vantagem em tudo, a famosa “Lei do Gerson”. Na economia o “Milagre econômico”, aquele postulado por Delfim Neto, de que deveríamos fazer o “bolo crescer” para só depois dividir toda riqueza, que deveria ser capitaneada em grande volume e grandeza. Todo o processo econômico acontecia, sem críticas, sem avaliações, sem liberdades. Tudo guardado e muito bem vigiado, nos porões da ditadura militar.
A situação da Instituição Educacional Brasileira, não era diferente. A Lei de Diretrizes e Bases de 1976 fez com que proliferassem escolas de nível universitário e particular, para formar professores que atendessem as novas necessidades governamentais, no sentido de baratear e sucatear a educação brasileira. As disciplinas de história e geografia passaram a ser ministradas em dois anos – o famoso “Estudos Sociais” – com o objetivo de formar e informar professores para a Educação Moral e Cívica e OSPB. O mal fadado “Estudo dos Problemas Brasileiros” e o cinismo levaram os nossos jovens e crianças a pensarem que vivíamos o “Milagre Brasileiro”.
Sem conhecimentos, sem críticas, sem filosofia, sem sociologia, nem antropologia. Idéias, ideais, saberes, conhecimentos humanos e das humanidades, não tinham comprovação científica e, portanto, eram pensadas como “folclore”. A Educação em todos os níveis apresentava-se e firmava-se como domesticadora. O momento em que vivíamos refletia muito bem esta situação de um modo coletivo. Despertar a curiosidade, a investigação, a observação e o rigor científico da comprovação, que é dever e obrigação de todos, não fundamentava a mentalidade dos políticos educacionais da época.
Conheci Frei Eduardo nesta época, quando começou em 1981 na presidência do Educandário Santo Antonio de Bebedouro, sua épica experiência de educador. Com todo amor, “O amor é uma espécie de serviço militar, para trás, homens covardes” como desafiava Ovídio, ano 2 aC. Desde então, conheci e tive o prazer de conviver com o verdadeiro “mestre”, que não só montava uma instituição que se preocupava em despertar a curiosidade, a investigação, a observação, a criatividade e o rigor científico da comprovação. E tudo muito bem acompanhado por um referencial religioso de bondade e amor.
Frei Eduardo vivia a educação como um pianista, que interpreta uma peça possuída pela partitura e a torna viva, transformando-a em objeto musical, tal como ele a vive na sua possessão. É essa a imagem que ele formava ao redor de sua paixão pela educação. Não buscava as disciplinas para comunicar-lhes saberes, buscava discípulos para neles plantar suas mais altas esperanças. A claridade é a cortesia do filósofo – o Frei Eduardo – e por mais profundas que sejam as águas nas quais se aventura o mergulhador, ao final o que conta é o luminoso peixe que traz para a superfície, como nos diz Skarmeta.
Para realizar seus objetivos, o método de trabalho que frei Eduardo sempre adotava era o “dialético-reflexivo”. Colocava em prática as idéias e, após refletir sobre as experiências, modificava o que fosse necessário, aplicando as mudanças que visava sempre no sentido de aprimorar a sua proposta educacional. A dinâmica, o movimento que leva da experiência a
reflexão e, desta novamente à experiência, foi sempre o referencial da proposta educacional do Educandário Santo Antonio. “O mais forte nunca é forte o bastante para ser sempre o senhor, a menos que transforme força em direito e obediência em dever”, como nos diz Rosseau.
Frei Eduardo é, antes de tudo, uma idéia, um compromisso com valores universais de pluralismo, respeito às diferenças, crenças na capacidade de argumentar, convencer e combater à injustiça e a opressão.


Minhas inspirações...

Quando em abril de 1992, comecei na direção da EEPSG “Anselmo Bispo” de Taiaçu, não tinha naquela época nenhuma experiência em gestão pedagógica. E como professora que era na referida escola ministrando aulas de historia, nutrida de críticas profundas e até mesmo abissais sobre as políticas educacionais, a burocracia pedagógica, a relação do ensino aprendizagem, o lugar que crianças e jovens ocupavam no processo burocrático, que faziam da educação meio de adestramento e os verdadeiros fins da educação como levar a autonomia, à cidadania, e a busca de fazer o saber, jogados literalmente para o espaço, levaram-me a procurar frei Eduardo, o Educandário, e toda a sua organização.
Já no primeiro ano de direção, encaminhei os professores das primeiras séries, os coordenadores – tanto os coordenadores de área como o pedagógico – para participarem no Educandário das salas de aulas, das salas ambientes. Visitei e participei do colegiado do Educandário assiduamente, para nas devidas proporções adaptar, mesmo sob o olhar crítico da Delegacia de Ensino, o método do Educandário na referida Escola. Mais tarde, o governo implantou o modelo de “Escola Padrão”. A nossa Escola não foi agraciada num primeiro momento, mas como já funcionávamos com salas ambientes, esteve conosco nos visitando o coordenador de ensino do interior. E por nossos esforços e lutas conseguimos nos inserir no projeto.
O referido projeto, “Escola Padrão”, floresceu muito na nossa Escola elevando o nível de aprendizagem, diminuindo consideravelmente a evasão escolar, fomentando o entrosamento com a comunidade o qual passou a ser formidável. A Escola transformou-se num espaço de cultura e de saber, em um pequeno município, que contava naquela época só com aquela Instituição de Ensino.
Em abril de 2000, assumi em Ribeirão Preto, a EEP “Aymar Batista Prado”. Localizada na cidade Universitária, com os seus palacetes, na frente, ao lado o SBT e, ao fundo, a favela. Assumi a referida Escola, em um momento dramático. A mesma havia sido apedrejada, os alunos das imediações não queriam estudar na Escola porque ali estudavam as crianças da favela. A situação era tão caótica, que nem mesmo as crianças da favela queriam estudar lá por sofrerem tanto preconceito.
Cheguei e tomei pé da situação. Recordei-me da organização pedagógica do Educandário Santo Antonio, e em conversas com o Frei Eduardo, incorporei na minha nova missão, o que foi possível naquele contexto, a Filosofia Educadora, Criativa e Libertadora.
Reuni o Conselho da Escola, Associação de Pais e Mestres, o Conselho de Bairro e todas as pessoas da comunidade do entorno. Nesta época, compunha parte da diretoria do CEPREV (Centro de Estudos da Prevenção da Violência Doméstica). Também cursava na USP em São Paulo, um curso de Pós Graduação contra Violência Domestica. Estava em constante contato com o Ministério Público, por trabalhar contra violência doméstica.
Com a Faculdade de Medicina da USP, de Ribeirão Preto, mantínhamos contato, pois, no Hospital das Clínicas, a Escola funcionava com duas classes hospitalares que atendiam as crianças e jovens, que ali ficavam para tratamento de saúde e recebiam o acompanhamento da aprendizagem no Hospital. Hoje ali funcionam três classes hospitalares. Participávamos do projeto “Medico da Família”, e do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Infantil da USP.
Fizemos também parceria com a Faculdade de Filosofia Barão de Mauá. Com a professora e os alunos do curso de Biologia, e alguns professores e alunos do curso de Arquitetura, com os alunos do curso de Pedagogia, nos reunimos em mutirão e passamos a trabalhar integralmente na Escola. Todos juntos - professores, funcionários, alunos, pais de alunos – com um só objetivo: fomentar a educação e que a mesma se estendesse por toda a favela.
Foi implementado, nos horários de HTPC (horário de trabalhos pedagógico coletivo), cursos para as professoras, tais como: na área da Arquitetura sobre estética e perspectiva; na Neuropsiquiatra e Psicologia Infantil aulas sobre déficit de aprendizagem, hiperatividade e outros problemas que as crianças apresentavam.
Montamos horta com nossos alunos, monitoradas pelos alunos do curso de Biologia. Havia cursos de plantão de dúvidas e reforço de aprendizagem, com os alunos do curso de Pedagogia. Contadores de historias, brincadeiras nos recreios monitorados, fanfarras, aulas de corte de costura, judô e pinturas. As crianças participavam de oficinas de espanhol, que a professora, uma argentina, ensinava cozinhar falando espanhol e depois escreviam todo o processo da oficina na língua espanhola. As oficinas de corte de costura, bordado pintura, judô, Karate eram ministradas pelas pessoas da comunidade.
Precisávamos então trazer as crianças para a escola. Era também necessário fazer o recenseamento dentro da favela e nos entorno, para sabermos quantas crianças estavam fora da escola. Montamos um mutirão com as professoras e funcionários. Eles visitaram de porta em porta, cadastrando os alunos. Eu, com o grupo de alunos da 4ª série entramos na favela, visitamos todas as moradias, “barracos”, e muitos nem barracos. Eram caixotes cobertos com plásticos, esgotos a céu aberto, sem as mínimas condições de sobrevivência. Naqueles dias deparei-me com a crueldade, o absurdo dos absurdos, da injustiça.
Para entrar na favela precisei de autorização dos “chefes” (os manos). A nossa comunicação foi muito proveitosa para todo o nosso trabalho. Trouxemos as crianças, tiramos os documentos, as certidões de nascimento, contamos apoio de todos os envolvidos no contexto.
A Escola funcionava todos os dias, inclusive nos finais de semana. Aos sábados, alguns voluntários, alunos e professores das Universidades do município cuidavam da horta e ministravam cursos e oficinas. As mães tinham cursos de corte de cabelo, oficinas de pães, doces, aulas com assistentes sociais e psicólogas para o encaminhamento doméstico de seus filhos. Os pais contavam também com o auxilio dos alunos e professores da Faculdade de Arquitetura para melhorar e dinamizar suas moradias.
Aos domingos a quadra era freqüentada somente pelos moradores da favela, que jogavam futebol, com todos os seus times. Tudo era supervisionado pelo zelador da Escola, um bombeiro aposentado, que mantinha uma convivência muito harmoniosa com estes moradores. Fazíamos festas juninas, bingos onde todos participavam com entusiasmo e alegria.
A direção da Escola, junto com a coordenadora pedagógica, mantinha um controle rigoroso da assiduidade dos alunos, bem como o seu desenvolvimento cognitivo e emocional. Todas as crianças que necessitavam de ajuda eram encaminhadas, por nós, para os seguimentos que mais aprouvesse às suas necessidades. As crianças participavam em horários diferentes das aulas, não só do “reforço de aprendizagem”, mas também dos projetos que estavam sendo desenvolvidos. Aquelas que apresentavam dificuldades e/ou doenças, eram encaminhadas para o médico, psicólogos e psicopedagogas.
No inicio do ano de 2002, matriculou-se na Escola uma menina de 7 anos, que logo no começo do ano passou apresentar um comportamento estranho, fora dos padrões para uma criança. A professora ficou muito desnorteada e não queria mais a menina na sala de aula. Passei então a levar a menina para a diretoria a maior parte do tempo. Diga-se de passagem, a garota era uma loirinha linda, que vinha todos os dias muito bem arrumada, limpinha, cabelos muito bem tratados, sempre trazida pelas mãos do pai (padrasto). Ela era diferente das outras crianças, que estavam sempre muito sujas, já que não possuíam as mínimas condições de higiene.
Passei um longo tempo observando a menina, que mordia, arranhava, batia nos meninos. A mãe foi chamada por várias vezes pela professora e por mim, mas sempre alegava que em casa a menina não apresentava problemas. Que foi uma criança prematura e que passou os primeiros meses de vida no HC (Hospital das Clinicas).
Até que numa manhã a menina começou andar com as perninhas abertas e só queria dormir, tinha muito sono, dormiu quase a manhã inteira. Então perguntei com quem ela dormia? A resposta foi: com meu pai.
Daí para frente fui às ultimas conseqüências na investigação, até tomar a menina da família, e coloca-lá em uma casa de abrigo para crianças vitimizadas. Passei, então, a acompanhar a vida dessa menina. Mais tarde o Juiz passou a guarda para uma avó, que não mantinha contado com a outra família.
E, infelizmente, as nossas professoras não estavam preparadas para ministrarem aulas para essas crianças. A professora da 1ª serie ficou de licença saúde durante todo o processo de investigação e de retirada da menina da família. Mais tarde transferiu-se da Escola, por se sentir ameaçada pelo padrasto. Denunciou-me por estar colocando-a e as outras professoras em perigo. Na outra Escola que ficava perto da casa da avó, falei varias vezes com a professora atual e com a direção da Escola, mas foi inútil, elas não conseguiam ensinar e alfabetizar a menina.
Em abril de 2003 fui para outra Escola em Ribeirão Preto, a EE “Otoniel Mota”. Lá outra realidade, outros desafios, outras batalhas. Em julho de 2004, aposentei-me na referida Escola.
Acompanho o andamento da favela e da menina vitimizada sexualmente, converso e procuro fazer com que a família mantenha-a em tratamento. Até hoje os tenho como amigos.
Este relato é um dos vários que ocorreram durante a minha gestão naquela escola. Exigiram-me atitudes e posturas capazes de ultrapassar a pedagogia vigente. Para estas situações tão complexas e comuns nas instituições de ensino, fazem-se necessárias atitudes criativas que levem a libertação e a formação integral do ser. Toda minha inspiração, para lidar com a complexidade dos conflitos que enfrentei enquanto educadora, foi por acreditar e internalizar profundamente a Filosofia Educacional, Criativa e Libertária.



                                                               Profª. Vera Lucia Bernardo

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